A Reforma Tributária do consumo é, provavelmente, a maior mudança na forma de cobrar impostos sobre bens e serviços no Brasil em décadas. Ela nasce para reorganizar o emaranhado de tributos que hoje incidem sobre o consumo – PIS, Cofins, IPI, ICMS, ISS – e substituí-los por um modelo mais simples e transparente, baseado em um imposto sobre valor agregado (IVA) dual. Na prática, isso afeta diretamente quem emite nota como pessoa jurídica (PJ) e, indiretamente, também quem fatura como pessoa física (PF), seja como autônomo, profissional liberal ou investidor que recebe renda de aluguel, por exemplo.
É importante entender, logo de início, que essa Reforma é focada na tributação do consumo. Imposto de Renda de pessoa física, Imposto de Renda de pessoa jurídica, CSLL e contribuições previdenciárias continuam existindo, com suas próprias regras. O que muda é a forma como os tributos sobre bens e serviços serão cobrados, como eles aparecem nas notas fiscais e como se encaixam no fluxo financeiro das empresas.
Do emaranhado de tributos ao IVA dual
Hoje, sobre praticamente tudo o que se consome no país, há uma combinação de tributos federais, estaduais e municipais. PIS e Cofins incidem sobre o faturamento, o IPI está ligado a produtos industrializados, o ICMS recai sobre circulação de mercadorias e alguns serviços, e o ISS é cobrado pelos municípios sobre a maior parte das prestações de serviços. Cada imposto tem regras próprias, base de cálculo diferente e uma infinidade de particularidades que geram complexidade, insegurança jurídica e guerra fiscal.
Com a Reforma, esse conjunto é substituído por um modelo de IVA dual. No plano federal, surge a CBS, Contribuição sobre Bens e Serviços. Em âmbito estadual e municipal, entra o IBS, Imposto sobre Bens e Serviços. Além deles, aparece o Imposto Seletivo, voltado a produtos e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, como cigarro ou itens altamente poluentes. A ideia é que CBS e IBS incidam de forma ampla e não cumulativa sobre operações onerosas com bens e serviços, enquanto o Imposto Seletivo atua em poucos casos específicos, com função extrafiscal de desestimular determinados consumos.
Essa substituição vem acompanhada de algumas premissas claras: simplificar o sistema, aproximar o Brasil dos padrões internacionais de IVA, acabar com o imposto em cascata, garantir mais neutralidade setorial e tributar no destino, ou seja, no local do consumidor e não da origem da mercadoria ou do serviço. Para quem é PJ, isso significa uma mudança profunda na forma de precificar, emitir notas e aproveitar créditos de imposto. Para quem é PF, significa conviver com um ambiente em que as empresas passam a ter incentivos diferentes na hora de contratar, escolher fornecedores e estruturar suas operações.
Cronograma: a mudança é grande, mas não é de uma vez só
A transição para o novo modelo foi desenhada para acontecer ao longo de vários anos, justamente para reduzir o choque nas empresas. Em 2026 começa uma fase de testes, com alíquotas simbólicas de IBS e CBS, em torno de 0,1% e 0,9% respectivamente, apenas para rodar o sistema e ajustar o motor de apuração.
A partir de 2027, a CBS entra em vigor de forma mais robusta e o PIS/Cofins começa a ser efetivamente substituído. O IBS, que toma o lugar do ICMS e do ISS, tem uma transição mais longa: há um período em que os tributos antigos vão sendo reduzidos gradualmente, enquanto o IBS aumenta na mesma proporção, até que, por volta de 2033, o novo modelo esteja integralmente implantado.
Ou seja, não é algo que muda de um mês para o outro. Mas quem usa esses próximos anos para se organizar – rever contratos, simular cenários, escolher melhor o regime tributário e ajustar sistemas – tende a atravessar esse período com muito menos turbulência.
O que muda para quem é PJ prestador de serviços
Para quem já atua com CNPJ, especialmente prestando serviços, os efeitos da Reforma serão bem concretos no dia a dia. Uma das mudanças mais visíveis é que o imposto passa a aparecer “por fora” na nota fiscal com muito mais clareza. Em vez de tributos embutidos no preço, a lógica do IVA pede que o valor do serviço seja destacado separadamente e, sobre ele, sejam calculados CBS e IBS. Isso obriga empresas a revisarem como apresentam seus preços, como desenham propostas comerciais e como negociam com clientes, porque o valor da nota passa a ter uma parte que é receita da empresa e outra que é tributo, com destinação automática ao fisco.
Além disso, o novo modelo é não cumulativo. Isso significa que a empresa apura o imposto devido pelo valor agregado, descontando créditos de IVA gerados em suas próprias compras e despesas. Custos como energia elétrica, aluguel de escritório ou coworking, contratação de softwares em nuvem, serviços terceirizados, aquisição de equipamentos e outros insumos do negócio passam a gerar créditos de CBS e IBS, que podem ser abatidos daquilo que a empresa deve pagar. Em contrapartida, gastos com folha de pagamento não geram crédito, o que afeta principalmente atividades intensivas em mão de obra, com poucos insumos tributados.
Outro ponto central está na convivência do novo IVA com os regimes atuais. O Simples Nacional continua existindo, mas foi adaptado para incorporar IBS e CBS na sua estrutura. O Documento de Arrecadação do Simples Nacional (DAS) permanece como instrumento unificado, mas com uma parcela destinada especificamente a esses tributos sobre consumo. A legislação recente passou a permitir, ainda, que empresas do Simples, em determinados casos, possam optar por recolher IBS e CBS fora do DAS, pelo regime “regular”, o que abre espaço para que clientes aproveitem crédito de IVA nas compras realizadas dessas empresas. É uma opção que pode ser vantajosa em cenários B2B, mas exige simulações cuidadosas caso a caso.
Já quem está no Lucro Presumido ou no Lucro Real vai sentir a troca de PIS/Cofins, ICMS e ISS por CBS e IBS de maneira mais direta. Empresas de serviços, em especial, tendem a revisar completamente sua política de preços, pois estimativas apontam que atividades sem direito a alíquota reduzida podem enfrentar uma carga efetiva mais alta do que a atual, enquanto setores com redução de alíquota ou com cadeias cheias de créditos podem, em alguns casos, até ter uma situação melhor do que hoje.
A isso se soma uma novidade que mexe com o caixa: o split payment. Em linhas gerais, essa sistemática faz com que, no momento em que o cliente paga, uma parte do valor vá diretamente para os cofres públicos, correspondente a CBS e IBS, sem transitar pela conta da empresa. PIX, cartão, boleto e outros meios de pagamento passam a conversar com as informações da nota fiscal, permitindo que o sistema financeiro separe automaticamente o valor do imposto. Para o fisco, isso reduz inadimplência e fraudes; para a empresa, significa menos espaço para usar o valor dos tributos como “capital de giro” até a data de vencimento.
Na prática, o prestador de serviços precisa se acostumar com um cenário em que recebe, desde o início, apenas o valor líquido da venda, enquanto o tributo vai direto ao governo. Isso exige um planejamento muito mais atento do fluxo de caixa, reavaliação de prazos com fornecedores, revisão de reservas financeiras e, em muitos casos, busca de novas linhas de crédito ou ajustes na margem para manter o negócio saudável.
Exemplos para visualizar o impacto no bolso
Imagine uma consultoria que cobra dez mil reais por um projeto de serviços para uma indústria. Num cenário em que a alíquota combinada de IVA seja de vinte e sete por cento, a nota deixa de ser simplesmente “dez mil” e passa a ter o valor do serviço e o valor dos tributos destacados. O cliente paga doze mil e setecentos reais, dos quais dez mil representam a receita da consultoria e dois mil e setecentos correspondem ao IBS e à CBS.
Se a indústria estiver em um regime que permita o aproveitamento de crédito, ela poderá se creditar daqueles dois mil e setecentos reais na sua própria apuração de impostos. Do ponto de vista da empresa tomadora, o custo efetivo do serviço é menor do que o valor cheio da nota, pois essa parcela volta na forma de crédito. Para a consultoria, por sua vez, o imposto devido não é simplesmente uma porcentagem sobre todos os dez mil. Ela poderá descontar créditos gerados, por exemplo, pelas despesas com aluguel do escritório, internet, plataformas de gestão, ferramentas de marketing digital e outros gastos ligados à atividade, pagando IVA apenas sobre o valor agregado na cadeia.
Agora pense em um escritório de advocacia ou uma clínica de saúde com estrutura enxuta em termos de insumos, mas com folha de pagamento alta e alguns poucos custos creditáveis. Se o setor não for contemplado com alíquota reduzida e tiver pouca despesa que gera crédito, a sensação pode ser de aumento da carga sobre consumo. Nesses casos, a estratégia de precificação e o posicionamento de mercado tornam-se ainda mais relevantes, assim como o acompanhamento atento da regulamentação, que define quais atividades terão tratamento diferenciado.
Quem continua atuando como PF: o que muda de verdade
Para o profissional que hoje trabalha como pessoa física, emitindo recibos, utilizando carnê-leão ou sendo tributado via retenções na fonte, a Reforma do consumo não altera diretamente as regras do Imposto de Renda ou do INSS. A tabela do IRPF, os códigos de recolhimento e as contribuições previdenciárias continuam baseados em normas próprias, fora do escopo principal dessa primeira fase da Reforma.
O que muda é o contexto ao redor. Empresas que antes não viam grande diferença entre contratar um profissional como PF ou contratar um PJ passam a ter um incentivo claro a fechar negócios com quem emite nota e gera crédito de IVA. Isso tende a valorizar ainda mais o profissional que se estrutura com CNPJ, regime adequado e emissão correta de documentos fiscais. Em alguns segmentos, o autônomo pode perceber, ao longo do tempo, que perde competitividade simplesmente porque o tomador não consegue aproveitar crédito de tributos na relação com ele, enquanto consegue quando contrata uma PJ.
Há ainda situações específicas em que operações realizadas por pessoas físicas podem se aproximar de atividade empresarial, como locação sistemática de imóveis ou certas atividades de intermediação e prestação de serviços de forma organizada. A legislação de IBS e CBS trata dessas hipóteses, e, em parte delas, a linha entre “PF investidor ou proprietária” e “atividade econômica” fica mais tênue, exigindo análise individualizada com apoio contábil ou jurídico.
De todo modo, mesmo quem hoje recebe exclusivamente como pessoa física precisa acompanhar a Reforma, tanto porque o ambiente de negócios muda, quanto porque, em alguns casos, pode ser mais vantajoso formalizar uma PJ, migrar para MEI ou Simples, ou reorganizar a estrutura de faturamento com base nos novos incentivos.
MEI e pequenos negócios: continuam, mas com atenção redobrada
O Microempreendedor Individual continua sendo uma porta de entrada relevante para a formalização. O regime simplificado, com pagamento fixo mensal e obrigações reduzidas, não desaparece com a Reforma. No entanto, por trás do valor pago no DAS do MEI, passam a existir componentes destinados também a IBS e CBS, que agora integram o arranjo de tributos sobre consumo.
Para o comprador, uma particularidade importante é que, em regra, as aquisições de MEI não geram crédito de IVA, justamente porque o regime foi desenhado para ser ultra simplificado. Isso faz com que empresas maiores, que dependem de crédito de IBS e CBS para equilibrar sua carga, olhem com mais cuidado para a proporção de compras realizadas de microempreendedores. Não significa deixar de contratar MEI, mas sim entender o impacto disso na apuração tributária e, se necessário, ajustar preços e condições.
Já as micro e pequenas empresas do Simples Nacional permanecem com o DAS como forma principal de recolhimento, mas convivem com novidades trazidas pela Lei Complementar 214/2025, que redesenhou a relação entre Simples, IBS e CBS. Entre essas novidades está a possibilidade, em alguns casos, de optar por recolher IBS e CBS fora do Simples, de forma regular, para permitir o aproveitamento de créditos pelos clientes. É uma escolha que não deve ser feita por impulso: pode ser ótima para empresas que vendem majoritariamente para grandes tomadores, mas pode não fazer sentido para negócios voltados ao consumidor final.
Como se preparar, na prática, para esse novo cenário
Mesmo sem usar listas, dá para enxergar claramente alguns movimentos estratégicos que valem para qualquer profissional ou empresa que fatura como PF ou PJ. O primeiro é conhecer, com detalhes, a própria estrutura de receitas e despesas. Saber quanto se fatura para pessoas físicas, para empresas do Simples e para empresas que estão em regimes fora do Simples ajuda a identificar em que medida o crédito de IVA será valorizado pelos clientes. Quanto maior a presença de tomadores que podem se creditar, mais relevante se torna o fato de você emitir notas com IBS e CBS destacados.
Em paralelo, é essencial mapear quais custos do negócio tendem a gerar crédito de IVA. Isso inclui gastos recorrentes com energia, aluguel, internet, softwares, serviços de terceiros e investimentos em equipamentos, entre outros. Quanto mais significativa for essa base de despesas, maior o potencial de reduzir o imposto a pagar por meio de créditos, o que pode compensar, pelo menos em parte, o impacto de alíquotas mais altas.
A partir daí, simulações passam a ser quase obrigatórias. Empresas de serviços podem comparar cenários com alíquota padrão e com eventuais reduções, levando em conta a estrutura de custos, o perfil de clientes e o fluxo de caixa. Profissionais que hoje atuam como PF podem estudar, junto com o contador, se a migração para MEI, Simples ou outro regime faz sentido. Para muitos, a Reforma será o gatilho para finalmente colocar na ponta do lápis se o modelo atual ainda é competitivo.
Outro movimento importante é revisar contratos, propostas comerciais e políticas de preços. Com o imposto aparecendo de forma mais explícita e o split payment afetando diretamente o caixa, cláusulas sobre reajuste, variação de alíquotas e responsabilidades fiscais ganham relevância. Em operações B2B, a discussão sobre quem se beneficia do crédito de IVA e como isso é refletido no preço tende a se tornar rotineira.
Por fim, sistemas e processos internos precisam acompanhar essa transformação. Emissor de notas, ERP, ferramentas financeiras e relatórios contábeis terão que conversar com o novo modelo, permitindo destacar IBS e CBS corretamente, acompanhar créditos e débitos, conciliar recebimentos líquidos após o split payment e gerar informações confiáveis para as obrigações acessórias. Isso vale tanto para empresas maiores quanto para escritórios menores que desejam se posicionar de forma profissional nesse novo ambiente.
PF, PJ, MEI: por que entender a Reforma agora faz diferença
No fim das contas, a Reforma Tributária do consumo não é apenas um tema jurídico ou técnico distante da vida real. Ela mexe com decisões bem concretas: ser PF ou PJ, escolher ou não o Simples, rever preços, renegociar contratos, investir em tecnologia e decidir com quais tipos de clientes e fornecedores se quer trabalhar. Para quem fatura como pessoa jurídica, o impacto vem na forma de notas fiscais diferentes, crédito de IVA, split payment e necessidade de replanejar fluxo de caixa. Para quem fatura como pessoa física, o reflexo pode aparecer na competitividade, na forma como o mercado passa a preferir contratar e, em alguns casos, na conveniência de formalizar um CNPJ.
Mais do que decorar siglas novas, o desafio é transformar essas mudanças em decisões melhores. E isso passa por acompanhar a regulamentação, manter um diálogo próximo com a contabilidade e usar os próximos anos de transição para testar cenários, corrigir rotas e, se possível, ganhar vantagem competitiva em cima de quem vai deixar para se preocupar com tudo isso apenas quando o “novo sistema” já estiver totalmente em vigor.
Seu negócio preparado para a Reforma — com apoio contábil
Diante de tantas mudanças e detalhes técnicos da Reforma Tributária, é natural surgirem dúvidas sobre qual é o melhor caminho para o seu caso específico — se vale a pena atuar como PF ou PJ, qual regime escolher, como precificar seus serviços ou como se organizar para o split payment e para o aproveitamento de créditos de IVA. Nessas horas, a contabilidade deixa de ser apenas uma área que “calcula imposto” e passa a ser uma parceira estratégica, capaz de traduzir a nova legislação para a realidade do seu negócio.
Um escritório contábil preparado e atualizado com as regras da Reforma consegue simular cenários, apontar riscos e oportunidades, orientar a escolha do regime tributário, revisar contratos e apoiar a organização dos seus processos financeiros e fiscais. Em vez de enfrentar tudo isso sozinho, você pode contar com profissionais capacitados para estudar o seu caso, responder às suas dúvidas e construir, junto com você, um plano de ação para atravessar essa transição com segurança e, sempre que possível, aproveitando as vantagens que o novo sistema pode trazer.

